Após 60 anos do Golpe Militar, Emiliano José relembra torturas vividas em Salvador
Há onze dias, ele retornou ao local onde viveu, possivelmente, os piores momentos de sua vida: o Forte do Barbalho
Dinaldo dos Santos/Aratu On
"Eu fui levado, de maca, completamente nu para uma cela! Theodomiro me viu chegar na maca e teve a certeza que eu estava morto, tal [era] o meu estado! Ele disse que eu tinha muitas cores! Meu corpo era um mosaico de cores, de tanta porrada que eu havia tomado!".
O relato é do jornalista e escritor Emiliano José, um dos revolucionários que lutaram contra a ditadura imposta pelo Golpe Militar, no Brasil, em 1964.
Hoje, dia 1º de abril de 2024, completa-se 60 anos que uma abrupta mudança na conjuntura política instituiu um sistema antidemocrático que durou 21 anos e foi fortemente combatido por militantes que representavam os movimentos de esquerda do país.
Procurado pelo Aratu On, Emiliano aceitou conversar sobre a experiência vivida, enquanto combatente na luta pela democracia em um dos períodos mais violentos que já houve, no Brasil, para os que eram contra o regime que estava em vigor.
PRISÃO E TORTURA NO BARBALHO
A cena, descrita inicialmente, aconteceu em 1970 no Forte do Barbalho, o maior centro de tortura de presos políticos da Bahia, à época da Ditadura Militar. O registro é exatamente do dia da chegada dele àquela prisão.
O companheiro que testemunhou a terrível situação da entrada de Emiliano na cela foi Theodomiro Romeiro dos Santos. Ele havia matado um sargento da aeronáutica, na região do Dique do Tororó, e na ocasião, se tornou o primeiro civil do país a ser condenado à morte. Contudo, a sentença nunca foi executada.
[caption id="attachment_311544" align="aligncenter" width="700"] Em Salvador, o Forte do Barbalho era o principal centro de tortura da Ditadura Militar | Foto: Dinaldo Santos / Aratu On[/caption]
Emiliano chegou ao Quartel do Barbalho no final da tarde do dia 23 de novembro daquele ano. Antes, tinha sido levado para a superintendência da Polícia Federal, logo depois de ser capturado por forças da ditadura, na Praia da Ribeira, onde estava reunido com mais dois militantes.
Até então, vivia na clandestinidade e usava uma identidade falsa. Seu pseudônimo era Pedro Luiz Vian. Naquele dia, somente ele foi preso, os outros conseguiram escapar. O trio estava sendo monitorado pela repressão, mas não tinha percebido a presença dos agentes.
"Nós nos reunimos na praia, durante toda a manhã, e terminada a reunião, fomos em direção ao ônibus. Eu seguiria para o Centro da cidade, mas no primeiro degrau fui puxado por um homem muito grande e comecei a ser espancado", contou.
Emiliano relatou que, desde o primeiro momento da captura, foi espancado e já chegou bastante ensanguentado e sem camisa na sede da Polícia Federal, onde foi recebido com muita hostilidade. "Lá havia outros revolucionários presos, mas todos fingiram que não se conheciam", comentou.
Com a PF, o 'Pedro Vian' ficou detido o restante da tarde. “Perto do crepúsculo, fui retirado da cela, algemado, colocado em um carro e levado para o Quartel do Barbalho: o terror de todos nós, à época!", frisou Emiliano.
Há 11 dias, ele retornou, com a nossa reportagem, ao local onde viveu, possivelmente, os piores momentos de sua vida. No extinto centro de tortura instalado pelos ditadores, em Salvador, mesmo depois de 54 anos, Emiliano José lembrou de cada pedaço de chão por onde andou naquele lugar.
“Aqui tinha um grande salão, onde havia treinos de karatê", observou, próximo a uma área que parece uma praça, situada logo após a entrada do quartel.
"Fui trazido pra cá e, depois que meus olhos foram vendados, fui levado em direção àquela ladeira, e comecei a subir, debaixo de muita porrada, muita pancada com barra de ferro. Quando cheguei no topo, eles abriram um tanque de água e começaram a me submeter a sessões de afogamento”, lembrou.
[caption id="attachment_311543" align="aligncenter" width="700"] No topo de uma ladeira, dentro do Forte do Barbalho, Emiliano José passou por sessões de afogamento em um tanque | Fotos: Dinaldo Santos / Aratu On[/caption]
Conforme o relato de Emiliano, por repetidas vezes, seus algozes lhe pegavam pelas pernas, de cabeça para baixo, e lhe colocavam dentro do tanque, onde permanecia por algum tempo, antes de ser retirado. “Eles queriam que eu falasse alguma coisa, mas a minha disposição era resistir até a morte", ressaltou.
Depois de muitas sessões, o prisioneiro foi levado para a Sala do Comando do quartel. No novo espaço de tortura, conheceu os capitães Hemetério Chaves Filho e Gildo Ribeiro. Neste local ele foi preparado para ser torturado no pau de arara e, simultaneamente, foi exposto a choques elétricos, com um fio amarrado no pênis e outro percorrendo o corpo inteiro.
Os representantes da repressão queriam desvendar os mecanismos das organizações revolucionárias que existiam naquele contexto do regime militar e, para isso, os métodos violentos de investigação viraram práticas comuns. Em seu segundo dia de prisão, as sessões de torturas continuaram com maior intensidade. "Eu, até ali, não disse uma palavra! Não abri um endereço, não falei um único nome!", reforçou.
ENVOLVIMENTO POLÍTICO
Antes do Golpe Militar, Emiliano José estava muito longe da política. Nascido em Jacareí, município da Grande São Paulo, ele contou que vivia a condição pacata de um cristão de iniciação católica, vinculado aos padres dominicanos da Paróquia de Jaçanã.
“O golpe de 64 para mim, naquele momento, passou em branco. Eu era, a rigor, um sujeito alienado e só fui ser acordado para a luta revolucionária a partir de 1967, quando passo a me ligar a um grupo de estudos e acabei entrando na luta política em 1968, ingressando na organização revolucionária Ação Popular [AP]”, explicou.
A partir dali, ele passou a se envolver com as questões da política e, no final de 1968, já estava bastante envolvido. No mesmo ano, no dia 7 de setembro, foi preso, pela primeira vez, fazendo uma panfletagem, durante o desfile militar, em São Paulo.
"Aí eu já estava fichado, já estava marcado! [...] Fiquei uns dois, três dias presos, mas quando saí, entrei na clandestinidade. Eu era bancário, saí do emprego e fui pra luta política revolucionária”, ressaltou.
A decisão de mudar para a Bahia, de acordo com Emiliano, foi motivada por uma questão conjuntural e teve relação muito mais com as circunstâncias dos acontecimentos da época e pela determinação partidária, do que pela sua própria vontade.
Emiliano mencionou que havia em São Paulo, em 1969, uma conjuntura de absoluta repressão, principalmente, pela imposição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968. O decreto, entre outras duras medidas, fechou o Congresso Nacional. "A partir dali, como costumam brincar: o filho chorava e a mãe não ouvia. A partir dali, começou o império do terror e da morte!", comparou.
Emiliano citou, ainda, que em setembro de 1969, o sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, organizado pelo Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8) e pela Ação Libertadora Nacional (ALN), proporcionou a libertação de 15 presos políticos, envolvidos na troca pelo diplomata, deixando o clima ainda mais tenso no país.
"Naquele momento, a conjuntura estava, absolutamente, explosiva e repressiva. Uma junta militar havia acabado de assumir o governo do país, impedindo que o vice, Pedro Aleixo, assumisse o cargo após o falecimento do presidente, o general Artur da Costa e Silva", pontuou, considerando que antes de adoecer, o mandatário demonstrava intenção de criar uma emenda para promover uma abertura política e acabar com o AI-5.
Piorando mais o cenário de terror, no dia 4 de novembro de 1969, o fundador da ALN, o baiano Carlos Marighela, é assassinado em São Paulo. Emiliano ressaltou que à época do sequestro do americano, Marighela não havia sido consultado sobre a ação e, ao tomar conhecimento, temeu pelas represálias.
"Como ele próprio dizia: não cabe pedir licença pra fazer a revolução! Eles fizeram o sequestro e Marighela falou: nós não vamos aguentar!”, destacou.
Com as ações opressivas radicalizadas ao extremo pela Junta Militar no país, era preciso dispersar as organizações revolucionárias e a Ação Popular resolveu que Emiliano fosse transferido para a Bahia.
AÇÕES NA BAHIA
Emiliano José desembarcou na Bahia nos primeiros dias de janeiro de 1970, quando começou a assumir sua identidade falsa. Para ele, o estado era visto, equivocadamente, como um local onde não havia repressão. Contudo, da pior forma, viria a constatar o engano, depois.
Ele iniciou como militante da AP, morando em casas de simpatizantes da organização, ao mesmo tempo que atuava no movimento estudantil. "Eu orientava tanto o movimento secundarista, como o universitário, recrutando jovens para a organização, mas a principal atuação era no secundarista, em colégios como o Central, Severino Vieira e outros".
Após algum tempo, ele assumiu, com mais dois companheiros, a direção seccional de Salvador e passou a atuar em todos os movimentos da AP. No segundo semestre, a organização entrou no radar da repressão, culminando com a sua captura no mês de novembro.
As pessoas com as quais ele se reunia na Praia da Ribeira, quando aconteceu a prisão, eram seus colegas de direção na AP: Dalva Stela, que Emiliano tratava pelo pseudônimo “Vera”, e o outro era chamado de Zeca.
"Eles tinham me localizado, não por mim, mas por Vera. Eles já tinham mapeado ela. Viram Dalva Stela e concluíram que aquilo era uma organização de subversivos!" disse.
https://www.youtube.com/watch?v=lqun1mcet_Y
DETENÇÃO NA LEMOS BRITO
Depois de passar dois meses detido no Forte do Barbalho, Emiliano foi levado, com mais quatro presos, entre eles, Theodomiro Romeiro, para a penitenciária Lemos Brito, no bairro da Mata Escura, em Salvador.
Os revolucionários ficavam na Galeria F, uma edificação em formato de semicírculo que abrigava 20 celas. Neste período, Emiliano já tinha sua verdadeira identidade revelada e passou a cumprir pena de quatro anos de reclusão.
"Em São Paulo, eu tinha três processos, fui condenado a oito anos, depois caiu para sete, mas saí em liberdade condicional com quatro", relatou.
Até o final de 1971, a pena era cumprida em celas fechadas, com permissões de visitas e banhos de sol, duas vezes por semana. Depois, as celas passaram a ficar abertas. A galeria F ficava trancada, mas os presos políticos podiam circular pela área.
Com a facilidade da comunicação, Emiliano contou que eles organizaram o Coletivo de Prisioneiros Políticos, que ele classificou como um poder constituído dentro da cadeia. "Nós nos reuníamos regularmente e elaboramos uma constituição dando os parâmetros de funcionamento político do grupo", explicou.
Emiliano saiu da cadeia no final de 1974, durante o governo do general Ernesto Geisel. O período de sua liberdade condicional é concluído em 1979, na gestão de João Batista Figueiredo, coincidindo com o declínio da Ditadura Militar. É justamente quando é criada a Lei de Anistia, concedendo perdão para todos os presos políticos, feito que dá início ao processo de redemocratização.
JORNALISMO E LITERATURA
Logo depois que saiu da cadeia, Emiliano se tornou jornalista e passou a se dedicar à profissão, trabalhando na Tribuna da Bahia. “Naquele momento, eu tinha apenas o curso médio, mas era um autodidata e, inclusive, havia dado aulas de história sobre o período colonial em um cursinho”.
Em 1975, ele foi convidado para atuar no Jornal da Bahia. “Com a exigência do diploma para continuar trabalhando, prestei vestibular na Universidade Federal da Bahia e fui aprovado, ingressando na Faculdade de Comunicação, a Facom”, contou.
Ao terminar a graduação, Emiliano se submeteu a um exame e passou a ser professor da Facom, onde deu aulas durante 25 anos, além de exercer, simultaneamente, a profissão de jornalista. Neste período, fez também cursos de mestrado e doutorado.
Posteriormente, Emiliano exerceu alguns cargos políticos. Foi vereador de Salvador, deputado estadual da Bahia e, apesar de não se eleger deputado federal, teve algumas oportunidades de assumir, como suplente, o cargo de parlamentar no Congresso Nacional.
Também se dedicou à literatura e é autor de diversos livros que retratam o período sombrio da Ditadura Militar, entre eles: Lamarca - o Capitão da Guerrilha; Galeria F Lembranças do Mar Cinzento; e Carlos Marighella - o Inimigo Número um da Ditadura Militar. Em 2020, aos 74 anos, foi eleito imortal da Academia de Letras da Bahia (ALB).
MARCHA DO SILÊNCIO
Nesta segunda-feira (1/4), os 60 anos do golpe militar vão ser lembrados em Salvador com a realização da Marcha do Silêncio. O evento tem saída prevista para às 17h, na Praça da Piedade, passando por toda Avenida Joana Angélica e chegando ao monumento aos mortos e desaparecidos da Ditadura Militar, no Campo da Pólvora.
Em um protesto sem palavras, parentes, amigos e companheiros de 38 militantes presos durante a ditadura militar vão caminhar empunhando fotos das vítimas, levando flores, tochas e cruzes. Juntamente com integrantes da sociedade organizada, vão protestar contra o esquecimento destes crimes, exigindo a cada ano respostas sobre o paradeiro destas pessoas.
Na Bahia, a marcha é organizada pelo Grupo Tortura Nunca Mais, Abraspet, Aepet, Sindipetro Bahia, Apub, ADJC, Astap.
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