Bahia na Segunda Guerra Mundial: estado teve 'campo de concentração' de imigrantes alemães
Pesquisadora da Uesb conta como a cidade de Maracás, no Centro-Sul da Bahia, recebeu alemães considerados suspeitos durante a guerra
Há 80 anos, em uma manhã de outubro de 1943, os moradores da pequena Maracás, a "Cidade das Flores e do Vanádio", que fica no Centro-Sul da Bahia, acordaram com a notícia de que dezenas de novos inquilinos haviam chegado ao município. Contam que eles foram de caminhão, amontoados no meio de mercadorias, de madrugada, escoltados por policiais. E eles eram bem diferentes dos nativos da região: as feições, as roupas, a cor da pele. E também soavam diferente - muitos falavam um português com sotaque estrangeiro, e outros falavam outra língua. É porque, na verdade, eles não eram brasileiros. Eram, em sua maioria, alemães.
A historiadora Marina Helena Chaves, professora do Departamento de Ciências Humanas e Letras (DCHL) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), investigou, na pesquisa “Vivendo com o outro: os alemães na Bahia no período da II Guerra Mundial”, os caminhos que esses imigrantes tomaram antes e depois do Brasil declarar guerra ao Eixo, em 1942. Ao Aratu On, a professora detalha: “Na escola, a gente aprendeu que a guerra não alcançou o Brasil, e isso é falso. Naquela época, nos primeiros anos da guerra, surgiu uma guerra ideológica também, e isso alcançou a população”.
Antes de tudo, é importante comentar: as primeiras colônias alemãs do Brasil foram fixadas no interior da Bahia, em 1818, antes mesmo de chegarem ao Rio de Janeiro ou ao Rio Grande do Sul. Mais de um século depois, nos anos de 1940, por mais que a ocupação alemã não fosse expressiva no estado, ela gerou bastante burburinho por aqui, principalmente em Salvador e no Recôncavo Baiano.
Alemães ou descendentes que moravam há anos na capital, e eram conhecidos nos bairros em que viviam, tornaram-se fonte de suspeita. Naquela época, depois que navios brasileiros foram bombardeados por nazistas na costa baiana, deixando centenas de vítimas, qualquer um que parecesse ou soasse estrangeiro era visto como espião ou inimigo.
As lojas em que eles trabalhavam foram depredadas e a polícia passou a receber diversas denúncias de vizinhos dos imigrantes, que acreditavam que eles estavam participando de atividades suspeitas. A situação, como narra Marina Helena, estava fora de controle: “Os conflitos na capital eram frequentes e acabavam por quebrar um pouco a ordem”. Em 1940, havia 542 alemães na Bahia, 396 homens e 146 mulheres. Deles, 409 viviam em Salvador.
[caption id="attachment_254049" align="alignnone" width="800"] Numa cidade pequena, como relata a professora Marina Helena, longe de ferrovias e centros industriais, seria mais fácil observar os passos e controlar as correspondências dos “inimigos”. | Foto: IBGE[/caption]
CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
E aí, o estado encontrou uma solução. Com o objetivo de proteger a costa baiana, o governo federal criou a Comissão Civil Policial de Vigilância do Litoral. Composto por cinco membros, esse grupo deveria exercer o controle sobre os “elementos nocivos à defesa nacional” - ou seja, imigrantes de países do Eixo, composto por alemães, italianos e japoneses - e também ficou responsável por deslocá-los de Salvador para Maracás, que fica a 976 metros de altitude. Em uma cidade pequena, como relata a professora Marina Helena, longe de ferrovias e centros industriais, seria mais fácil observar os passos e controlar as correspondências dos “inimigos”. Quase como um campo de concentração. Aliás, oficialmente, era assim que a colônia alemã de Maracás era chamada.
Apesar do termo ter sido utilizado por autoridades baianas da época, Marina Helena alerta: o “campo de concentração da Bahia” nunca foi nada parecido com os campos de morte nazistas. Antes da viagem, ficou definido que policiais e agentes de investigação iriam junto, com o objetivo de “estabelecer a ordem” e enviar relatórios mensais à Secretaria de Segurança Pública sobre as atividades dos internos. Os imigrantes mais pobres, como explica a professora, deveriam ser sustentados pelo governo até conseguir uma ocupação, e os que já tinham alguma qualificação profissional eram direcionados às vagas de emprego disponíveis. O objetivo, como aponta a pesquisadora, era regenerá-los.
Em 1943, o Jornal A Tarde publicou a seguinte matéria sobre Maracás:
“Os súditos do Eixo internados no interior do Estado estão trabalhando sob a vigilância de um destacamento da Força Policial. O prefeito daquele município, major Oscar Sá, por sua vez, não se tem descurado das providências a seu cargo, referentes à obtenção de acomodações para o alojamento de novos eixistas, no que se vem fazendo ajudar pelos próprios alemães. Ainda esta semana, outra turma de súditos do Eixo seguirá para Maracás e, muito em breve, estará o litoral baiano inteiramente livre da presença dos perigosos estrangeiros”.
[caption id="attachment_254056" align="alignnone" width="600"] Em 1943, o jornal A Tarde publicou: "Outra turma de súditos do Eixo seguirá para Maracás e, muito em breve, estará o litoral baiano inteiramente livre da presença dos perigosos estrangeiros". | Foto: IBGE[/caption]
E, lá, havia regras que iam além do controle policial. O prefeito da cidade, Major Oscar Sá, determinou que os alemães “não podiam sair do município, nem expressar opinião sobre a vida dos seus habitantes; estavam proibidos de falar sobre a Alemanha e sobre a guerra; não podiam tomar bebidas alcoólicas; não deviam se indispor com os moradores; tinham que obedecer o toque de recolher; não podiam ter rádio e nem era permitido assisti-lo”.
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Os imigrantes considerados “perigosos”, como descreve a historiadora, foram levados a uma fazenda chamada “Boca do Mato”, a 20 km de Maracás. Marina Helena Chaves escreveu: “Desconhecemos os critérios adotados pela polícia para distribuir os alemães nessas duas áreas, embora haja indícios de que, no início, aqueles considerados mais perigosos tenham sido instalados na fazenda, onde podiam se ocupar com o plantio de verduras”.
Há alguns anos, Marina morou e trabalhou como professora em Maracás, que, hoje, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tem 20.393 habitantes. Ela ainda se lembra da surpresa que sentiu ao descobrir que a escola em que dava aula, o Colégio Municipal da cidade, havia sido construída por alemães. Ao Aratu On, a pesquisadora falou sobre a imigração alemã na Bahia, as consequências da Segunda Guerra na capital baiana, a criação da colônia de Maracás e como ficaram a cidade e seus novos moradores no fim do conflito.
[caption id="attachment_253715" align="alignnone" width="600"] Praça Ruy Barbosa, em Maracás. | Foto: IBGE[/caption]
Havia um número expressivo de imigrantes alemães na Bahia?
A imigração alemã na Bahia data do século 19. A Bahia, na verdade, teve as primeiras colônias alemãs do Brasil. O pessoal lá do Sul não gosta muito dessa história, não. Petrópolis disputa com São Leopoldo essa primazia, em 1824. E a presença alemã na Bahia, em termos de fixação de colônia, é de 1818, e tem alguns estudiosos que afirmam que é ainda anterior a isso.
Quais cidades tinham o maior número de alemães na Bahia?
No século 20, Salvador tinha um número maior. Mas, as primeiras colônias alemãs não foram em Salvador. A Bahia teve colônias alemãs lá no sul do estado. A colônia Leopoldina, em 1818, por exemplo, em homenagem à princesa Leopoldina, ficava próxima ao rio Peruípe, numa área da cidade de Caravelas. Cerca de 2 mil escravos trabalhavam nessas terras cultivando café, com uma produção anual de 25 mil sacas. No mesmo ano, também havia uma em São Jorge dos Ilhéus. Também foram criadas as colônias de Frankental, Itacará, e o Núcleo Moniz. E eram colônias de prospecção, exploratória, de se beneficiar das riquezas existentes na Bahia. Mas, essas colônias não deram certo. Quando eles vieram, a Alemanha ainda não era nem unificada, ela não existia enquanto Alemanha.
O que fez com que esses imigrantes viessem para cá?
O plano do Governo Imperial era trazer 10 mil colonos originados do norte da Europa. Eles seriam divididos entre a Bahia e o Maranhão. Cerca de 2 mil pessoas, entre adultos e crianças, foram transportadas do porto da Antuérpia, entre novembro de 1872 e agosto de 1873, e vieram para o Brasil. Os colonos foram distribuídos em quatro núcleos, mas acabaram sendo vítimas de tifo, malária e outras doenças. Além disso, houve conflitos entre os imigrantes católicos e os protestantes, e o local escolhido pelo governo aqui também não era propício para a agricultura. Em maio de 1874, os quatro núcleos já não existiam mais. Cerca de 1.005 imigrantes foram repatriados para a Alemanha, 738 morreram e 160 ficaram no Brasil.
Mas, por que a Bahia?
A gente tem uma questão aí que é representativa, que era ocupar áreas, para evitar a perda desse território. A gente passou pela invasão holandesa, invasão francesa, no século 17. Então, a ideia era fazer com que esses locais se desenvolvessem e aumentasse a possibilidade de encontrar riquezas para o Império. Essas colônias que foram fundadas, os quatro núcleos, eram compostas por alemães-austríacos, alemães-suíços, ingleses… nesse período, elas saíam da Europa por crises políticas, crise econômica, perseguição religiosa e fome. A Alemanha, nessa época, enfrentava problemas sociais e econômicos que faziam com que grande parte da população saísse de lá.
Durante a guerra, havia alguma rejeição ou resistência da população contra essas pessoas?
Na escola, a gente aprendeu que a guerra não alcançou o Brasil, e isso é falso. Naquela época, nos primeiros anos da guerra, surgiu uma guerra ideológica também, e isso alcançou a população. Era um esforço que vinha do próprio Getúlio, para justificar a declaração de guerra do Brasil aos países do Eixo, em 1942. O propósito de Getúlio era assegurar o nacionalismo, e aí, começou a nascer uma visão de que os imigrantes alemães eram inimigos da nação brasileira. O primeiro ato formal de Getúlio não foi entrar na guerra, mas, sim, tornar inimigos os alemães, italianos e japoneses. Todos os que representavam o Eixo. Houve um ato governamental para torná-los inimigos do Brasil.
Como era a relação dos baianos com eles?
Houve uma rejeição muito grande. Por exemplo: um baiano tinha um vizinho que era um imigrante alemão casado com uma baiana. Mas, a guerra ideológica os tornou inimigos. Até as crianças eram afetadas no dia-a-dia, com a repercussão dessa guerra. Os filhos também ficaram inimigos. Houve toda uma estratégia para fazer esse clima crescer. Quando os navios começaram a ser afundados na costa do Brasil, e também na costa da Bahia, houve também o estado de guerra. A minha mãe, que já faleceu, lembrava desse momento em que apagavam-se as luzes das casas, porque havia um medo. Não podiam ouvir um ruído de avião que já achavam que era os alemães invadindo a Bahia. Era um clima tenso, que atingiu boa parte da população baiana.
Os imigrantes chegaram a precisar fechar comércios, por exemplo, por causa das represálias?
Muita coisa foi destruída, a população depredava. Essa rejeição foi crescendo, desde a agressões verbais até conflitos físicos mesmo. E, aí, entra Maracás. A escultura do Indígena Maracá, que está lá na praça da cidade, foi feita por um escultor alemão. O colégio de Maracás também. A igreja é uma obra alemã. E essas construções já foram feitas depois da guerra.
O que aconteceu em Maracás? Foi um espaço criado pelo governo do estado?
Parte dos comerciantes, tripulantes, dos alemães que trabalhavam na charutaria, donos de comércio em Salvador… muitos deles foram presos e levados para lá.
Eles eram presos por quê?
Quando o Brasil entrou na guerra, a situação se complicou, porque eles passaram a ser considerados espiões. A polícia apreendia diversos objetos que faziam com que esses imigrantes fossem considerados suspeitos. Tinha objetos que não tinham nenhuma relação com espionagem, com nada. Tem uma história de um alemão que morava no bairro do Cabula, em Salvador, que é uma área que era pouco povoada. Aí, um vizinho um dia viu esse imigrante, que mandou os funcionários cavarem um buraco no quintal para enterrar a bandeira da Alemanha e alguns objetos que poderiam fazer com que ele fosse considerado um espião. O vizinho avisou à polícia. E isso era manchete dos jornais.
E aí, eles foram levados para Maracás?
Eles foram para Maracás como prisioneiros de guerra. Eram chamados “campos de concentração”. O termo "campo de concentração" não é de origem alemã. Antes do nazismo, era empregado como um local em que se prendiam os inimigos. O que Hitler fez foi transformar em campo de morte, um local de extermínio de pessoas. Mas, em Maracás, depois da guerra, os moradores falavam com carinho e até com saudade dos alemães.
Mas, como foi essa ida deles para esses lugares? Eles foram contra a vontade deles?
Na minha pesquisa, eu descobri que há uma dicotomia em relação a isso. Foi para isolar, mas também para acabar com os conflitos que estavam acontecendo em Salvador. De certa forma, foi uma maneira de protegê-los. Alguns alemães eram casados com brasileiras e levaram os seus filhos. Os conflitos na capital erem frequentes. Essa ação do governo não tinha só o intuito de tirar de circulação os possíveis espiões, não era só isso. Era, de certa forma, conter os conflitos, que eram permanentes, e que acabavam por quebrar um pouco a ordem. As denúncias dos vizinhos eram por motivos diversos. E, inclusive, alguns alemães, por temerem a própria segurança e a da família, pediram para ir para o interior da Bahia.
[caption id="attachment_253716" align="alignnone" width="392"] A igreja de Maracás é uma obra alemã. | Foto: IBGE[/caption]
Mas, como era a vida deles lá? Eles ficavam presos na cidade?
Maracás era tida como um campo de concentração para alemães, mas, em nada, nada mesmo, se parece com o nazismo. Nada. Aqueles que eram, de fato, considerados possíveis espiões, foram levados para uma região, que hoje é próxima a Maracás, para uma fazenda chamada “Boca do Mato”. Era de propriedade do governo do estado. Eles foram levados para lá. Tinha uma casa. Esses, ficavam um pouco mais distantes da cidade, há cerca de 20 km. Os outros ocupavam casas comuns, na cidade, trabalhavam e viviam normalmente. Eles tinham que seguir algumas normas, como toque de recolher à noite, e não podiam sair da cidade sem autorização.
E como eles foram para Maracás? Quem os levou?
Eles foram conduzidos de Salvador para Maracás por um número pequeno de policiais. Isso precisou ser feito com uma certa reserva, para que a população não tomasse conhecimento. Segundo os moradores, eles chegaram lá durante a noite, transportados em cima de caminhões com mercadorias. Na memória de vários moradores, está o momento em que eles acordam e dão de cara com imigrantes. Pessoas diferentes em termos de físico, de altura, de cor, de língua. Por mais que eles falassem alguma coisa de português, os sotaques eram de estrangeiros. As pessoas que entrevistei falavam sobre o momento em que acordaram e encontraram esses novos moradores. Eles moravam em tudo quanto era lugar pela cidade, em casas diferentes, mas tinham uma cozinha central. E aí, eles desciam todo dia para pegar a comida. Até os que moravam na Boca do Mato iam para Maracás pegar comida. Um alemão que entrevistei fala com carinho desse tempo. Ele disse que, se não fosse a guerra, teria sido a melhor época da vida dele. Eles não podiam sair à noite, aí criavam estratégias para sair, para namorar, tocar violino. Em Maracás, só tinha um rádio, que era a preciosidade dos moradores. Eles ouviam “A Voz do Brasil”. E era justamente nesse momento que os alemães conseguiam ficar sabendo sobre a guerra.
Após a guerra, o que aconteceu com esses imigrantes? Os que estavam presos foram libertos? Eles continuaram na Bahia?
Tem até uma história sobre isso. Tomei conhecimento de que o colégio em que eu trabalhava, o Colégio Municipal de Maracás, foi construído por um alemão. Depois da guerra, eles tiveram direito de voltar para as suas casas, retomar as suas vidas, e receberam a ordem de sair de Maracás. Mas, alguns acabaram ficando.
Essa reportagem faz parte da série do Aratu On, "Bahia na Segunda Guerra Mundial", que detalha a relação da Bahia e dos baianos com a Segunda Guerra Mundial, conflito que aconteceu entre 1939 e 1945. Na próxima semana, será publicada uma matéria que fala sobre a ocupação norte-americana em Salvador, que culminou nas reformas do aeroporto da cidade e da Estrada Velha do Aeroporto, e no aumento da prostituição na capital baiana.
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