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Banho de Bahia: startup transforma dendê utilizado por baianas de acarajé em sabonetes

Reciclagem do azeite de dendê evita que milhões de litros de água sejam contaminados

Por Juana Castro

Banho de Bahia: startup transforma dendê utilizado por baianas de acarajé em sabonetesReprodução/Instagram (@oia.fia)

Em um dia de trabalho, a baiana de acarajé Isabel Cristina Santos, ou apenas Bel, de 44 anos, utiliza cerca de cinco litros de azeite de dendê, ingrediente indispensável à iguaria. Considerando que ela monta o tabuleiro três vezes na semana, são 15 litros por semana, 60 por mês e 720 por ano, em média.


Salvador tem cerca de 3,5 mil baianas, de acordo com dados de 2023 da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau e Receptivos da Bahia (Abam). Assim, baseando-se na média estimada acima, ao menos 2,5 milhões de litros de dendê são utilizados anualmente (apenas por elas e para fins laborais). Mas, depois do uso, para onde vai todo esse dendê?


O descarte correto de óleos e azeites ainda é uma dúvida para muitas pessoas, embora seja sabido que são produtos altamente poluentes. Um litro de óleo ou azeite é capaz de contaminar até mil litros de água e pode demorar entre 10 e 15 anos para se desintegrar quimicamente.


Foi da preocupação ambiental e de observar a rotina das profissionais que o químico, biólogo e doutor em biotecnologia Flávio Cardozo, junto com a companheira dele, a educadora física e mestra em educação, Carolina Heleno, idealizaram e projetaram a "ÓiaFia! Saboaria Artesanal", que utiliza o azeite de dendê - que seria descartado pelas baianas - na composição de sabonetes.


“A ÓiaFia! foi construída da vontade de transformar. Sempre atuei nas áreas de pesquisa, economia circular e me incomodava muito, principalmente na pandemia, ver muitos resíduos e notar que não conseguiam destinar para uma coleta seletiva eficiente”, conta Flávio. “E a gente também gosta muito de comer acarajé, né?”, acrescenta, entre risos.


[caption id="attachment_336922" align="alignnone" width="700"] Flávio e Carolina, cofundadores da ÓiaFia! | Foto: Juana Castro/Aratu On[/caption]

O sócio-fundador da marca é do interior de São Paulo, “com raízes no sul da Bahia”, enquanto Carolina é soteropolitana e possui família na Chapada Diamantina. Assim, abraçar a baianidade de forma mais extensa era um desejo do casal. “E se a gente conseguisse reciclar o dendê das baianas de acarajé, gerar benefícios, para reduzir impactos ambientais, mas, ao mesmo tempo, comunicar o quão especial a Bahia é nesses territórios de identidade?”, questionavam.


Carolina destaca que a saboaria ganhou forma no “boom” do autocuidado, em meio à pandemia, em 2021, mas era importante, para eles, outro olhar. “Como é que vou estar bem se, quando olho ao redor, as pessoas estão passando dificuldades, a natureza está sendo destruída? Era preciso ser um ‘autocuidado coletivo’”, avalia.


“A ÓiaFia! foi um movimento. Ela começou na saboaria e fomos desenrolando outros processos, até chegar nessa economia circular, com essa ideia um pouco mais ampla do que é o autocuidado coletivo”, completa a empreendedora.


O próprio nome da marca, pensado por Carol - que estuda branding -, veio da ideia de chamar atenção para a questão da reciclagem, qualidade de vida das baianas e da população em geral, através de uma expressão regional que quer dizer “olha, filha” (na qual “filha” pode ser qualquer pessoa). “Óia, fia, a solução dos seus problemas está aqui”, brinca a sócia ao explicar.


A partir daí, os dois apresentaram o projeto a algumas baianas e criaram uma rede parceira que, hoje, conta com 25 trabalhadoras. “Identificamos que a reciclagem do dendê não acontecia, porque geralmente as empresas não chegam até as baianas. Então, vamos ao tabuleiro ou às residências delas, realizamos a coleta, geramos benefícios para elas e depois transformamos esses resíduos em sabões de identidade baiana”, explica Flávio.


As baianas da rede repassam ao casal baldes de 10 a 15 litros com o dendê que utilizaram. Em troca, ganham uma quantia em dinheiro, que varia de R$ 15 a  R$ 30 o balde. Os resíduos, então, são levados para um espaço apropriado na casa de Flávio e Carolina, e fica com o primeiro a responsabilidade pelo processo químico que os transforma em sabão. “É artesanal, mesmo. De verdade!”, reforça a sócia.


[caption id="attachment_336911" align="alignnone" width="700"] Coleta do dendê utilizado | Foto: ÓiaFia![/caption]

Há 53 anos no ofício, Dona Mary Jane, 63, é uma das integrantes dessa rede. “Desde quando tinha 10 pra 11 anos”, vende acarajé no Terreiro de Jesus, Centro Histórico de Salvador. “Tem um deck, lá, com minha foto”, conta ela, acrescentando que é a única no local a vender acarajé e vatapá veganos (sem ingredientes de origem animal). “Várias pessoas vão procurar, às vezes são alérgicas... E também pedem o tradicional, com camarão. Aí, eu levo em vasilhas separadas”, frisa.


Ela começou a entregar o dendê que já tinha utilizado ainda no início da ÓiaFia!. “Eu fico juntando, ligo, e eles fazem a coleta. Doei uns três baldes recentemente”, afirma. “Aí, eu recebo o Pix, o papel do acarajé, uns brindes…”, continuou. Esses itens compõem o “kit baiana sustentável”, que vem ainda com sabões de dendê reciclado e bucha vegetal.


A relação com a saboaria, no entanto, vai além. Graças a um dos projetos derivados da ÓiaFia!, Dona Mary Jane foi à Universidade Federal da Bahia (Ufba), onde ingressou no curso “Baianas Digitais”. “É ótimo, maravilhoso! Eu aprendi muito com o celular, porque não sabia nada ‘de mexer’, assim… aprendi a passar e receber recados. Hoje em dia, eu sou uma baiana digital e agradeço a esse curso”, diz, orgulhosa.


[caption id="attachment_336903" align="alignnone" width="700"] Mary Jane é baiana de acarajé há 53 anos | Foto: arquivo pessoal[/caption]

O “Baianas Digitais” é um projeto de pesquisa e extensão, fruto da parceria entre a ÓiaFia! e pesquisadores da universidade. “A gente desenvolve ações de inclusão digital e empreendedorismo sustentável com as baianas de acarajé. Percebemos que era uma dificuldade para muitas delas estar no meio on-line”, comenta Flávio.


Aproximadamente 100 baianas já foram contempladas, em quatro semestres de existência. “É um impacto que não tem como mensurar, mas é de sentir, mesmo, como vem mudando a vida delas, a comunicação… É muito bacana vivenciar o impacto gerado na sociedade. Já tem baiana que fala ‘eu sou uma baiana sustentável, porque eu reciclo meu dendê, esse é o meu diferencial’”, completou o químico.


É o caso de Isabel Cristina, a Bel, citada no início da matéria. “Até já coloquei no meu Instagram: ‘Bel Acarajé e Abará - Empreendimento Sustentável’. Quando os clientes perguntam, aí eu já digo a história!”, contou, bem-humorada. Ela, no entanto, fez um caminho diferente do de Mary Jane, pois conheceu a saboaria ao ingressar no curso.


[caption id="attachment_336904" align="alignnone" width="700"] Turma do 'Baianas Digitais' | Foto: ÓiaFia![/caption]

Após deixar o emprego de carteira assinada para se dedicar aos cuidados da mãe, que tinha sofrido um AVC, também no início da pandemia, e do filho, então com 4 anos, viu na produção de abarás - inicialmente - e de acarajés uma nova forma de renda.


“Vi um anúncio ‘aprenda a fazer abará agora’, aí fui olhando na internet, fui pegando ‘artimanha’, mainha me ajudando… Fui aprendendo a embalar, como fazer a massa, e passava no Tororó [onde morava] anunciando ‘o abará gostoso e saboroso’”, conta.


A vontade de se aprimorar veio, mas Bel não era licenciada, nem tinha tabuleiro. Possuía um carrinho que mandou fazer, porém foi notificada pela prefeitura. Precisou, então, parar e se reorganizar. “Já estava querendo desistir, pois não estava tendo sucesso e não tinha educação financeira”, confessa. “Através da Abam conheci o ‘Baianas Digitais’. Adorei. Aprendi a precificar e não ter perdas ou decepções no empreendedorismo”, explica a baiana. Ela diz, ainda, que já guardava o azeite de dendê que utilizava nas produções, mas não sabia levar “ao lugar certo”.


Hoje, Bel mora em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, onde também monta o tabuleiro e entrega os quitutes por encomenda. No ponto da Barra, na capital baiana, mais precisamente no Jardim Brasil, próximo à loja Nutrimaster, vai às quintas e sextas. “O universo conspira a favor quando você acredita em você”, reflete.


[caption id="attachment_336905" align="alignnone" width="700"] Bel em seu ponto no Jardim Brasil | Foto: arquivo pessoal[/caption]

ECONOMIA CIRCULAR


As baianas parceiras foram as primeiras a testar os sabonetes da ÓiaFia! (lembram-se dos “brindes” de Dona Mary Jane?), mas fizeram parte do processo desde o princípio, como explica Carolina.


“Validamos a formulação dos produtos junto com elas. Fomos coletando o dendê e elas foram dando indicações, como queriam o aroma... Foi bacana porque, me desculpe, Moraes Moreira, mas mancha de dendê sai!”, brincou a cofundadora da saboaria, afirmando que o feedback vem das próprias trabalhadoras. Os tecidos e toalhas brancas, que às vezes ficam manchados de dendê, voltam ao branco novamente com os sabões.


“O sabão feito com o dendê delas tira a mancha de dendê delas. Foi gostoso de ouvir”, lembra Carol.


[caption id="attachment_336910" align="alignnone" width="700"] Produção e resultado | Foto: ÓiaFia![/caption]

DIFICULDADES


Apesar do ciclo de benefício mútuo, Carolina lamenta que a marca ainda tenha uma limitação de captação: “Não dá para a gente sair pegando [o dendê]. Muitas baianas entram em contato e a gente não tem condição, ainda, de atender a todas. Precisamos dar esse salto e sair desse espaço (caseiro). Lá em casa tem um quarto separado exatamente para essa produção, mas sabemos que é preciso ampliar isso tudo”.


O casal começou com 500 reais e depois conseguiu levantar quase R$ 300 mil em recursos - por meio de editais, parceiros e vendas - que têm sido utilizado no projeto. “A gente precisa de equipe para expandir, remunerar [futuros] funcionários. A grande luta é fazer esse projeto sustentável por meio de seus produtos e processos”, pontuou Flávio.


“Isso, como a galera gosta de dizer, é o MVP [Produto Mínimo Viável, em português] e, nesse momento, a gente precisa de investimentos”, afirma Carolina, anunciando que daqui a dois meses vão lançar uma campanha de financiamento coletivo:


“A ÓiaFia! chegou em um ponto que ‘ou vai ou racha’. A gente precisa desse financiamento para conseguir espaço físico, um carro para as coletas. Ele precisa dar certo para que a ÓiaFia! realmente cresça essa estrutura e se mantenha, porque senão, vai ser mais outro dado bacana, um projeto muito legal, efetivo, que gera muitos benefícios, com impacto socioambiental muito grande, mas que talvez não vá para a frente. É uma startup/empresa/marca que a gente precisa fazer dar certo e que outras empresas percebam o potencial desse serviço e que não seja um projeto pontual”.


"A gente consegue aglutinar as pautas do ambiental, social e da governança (ESG) das empresas; a gente dá vazão à pauta ESG de uma forma bem complexa, mas 'periga' não continuar, porque não tem espaço", finaliza Carol. 


Flávio acrescenta que a ÓiaFia! entra em uma linha de cosméticos, com regularização necessária perante à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa): "O artesanal, infelizmente, se enquadra numa indústria. Não tem uma regulamentação que te coloca numa escala menor e a gente precisa fazer coleta seletiva, de um veículo adequado".


"A gente mora no terceiro andar. Esses dias estávamos descendo eu, Flávio e o porteiro, com umas bombonas de quase 60 litros. Quase morri!", lembra Carol, rindo. "Ao mesmo tempo que é massa, é difícil".


[caption id="attachment_336897" align="alignnone" width="700"] Carolina e Flávio com barras de sabonetes | Imagem: ÓiaFia![/caption]

INVESTIMENTOS


A estimativa "para fazer a empresa rodar por pelo menos 18 meses", segundo os sócios, é de R$ 500 mil. Nessa busca por investimento e visibilidade, nos dias 6 e 7 de junho eles estarão em João Pessoa, capital da Paraíba, no "Neon 2024", evento que integra o programa "Startup NE", do Sebrae, uma estratégia regional de fomento e desenvolvimento de startups no Nordeste. A saboaria será uma das dez startups baianas selecionadas, dentre 250 da região que vão expor soluções e serviços para mais de 50 investidores e corporações presentes, com estimativa de 20 mil participantes.


"A gente trabalha com a logística reversa. Existe uma lei [nº 12.305, de 2010] que diz que quem produz é responsável pelo recolhimento. Assim, as empresas que produzem azeite de dendê poderiam investir na ÓiaFia!, porque o azeite de dendê produzido precisa ser reciclado, e quem faz isso? A ÓiaFia!", conclui Carol.


IMPACTOS


Mesmo reconhecendo uma capacidade limitada de produção, a "ÓiaFia!" já alcançou números expressivos. "A gente está chegando em duas toneladas de dendê reciclados. São cerca de 40 milhões de litros de água que evitamos de ser contaminados", pontua Flávio.


Nesses poucos anos de existência, a startup produziu mais de 5 mil barras de sabões e os produtos levam embalagens biodegradáveis, evitando a utilização de mais de milhares de embalagens plásticas. Sem contar as 25 baianas parceiras e mais de mil clientes alcançados. "Há todo um processo e cuidado que, numa escala limitada, conseguimos gerar um impacto significativo", acrescenta o químico.


CIRCULAR E ANCESTRAL


Nesse contexto da economia circular visado pela "ÓiaFia!", de buscar um modelo econômico mais sustentável e eficiente, de “autocuidado coletivo”, é possível, ainda, traçar relação com a ancestralidade e resiliência. Afinal, as baianas de acarajé são pioneiras no quesito empreendedorismo. Embora o ofício tenha começado, no Brasil, em situações adversas, no período da escravidão, resistiu ao tempo e, desde 2005, é Patrimônio Cultural Imaterial do país.


EXTRA: SABONETES DE ORIXÁ


Além do sabão de dendê, a "ÓiaFia!" também produz os "Sabonetes de Orixá", cuja base é óleo de palma. "É uma conexão com a espiritualidade", revela Carol. Quando iniciaram o projeto, na pandemia, perceberam-se fragilizados e buscando conforto espiritual e Flávio, que é da Umbanda, foi congregando conhecimentos.


"A gente pensou em cada sabonete inspirado em uma energia, uma força do orixá, trazendo seus elementos. Cada sabonete tem uma erva específica, a exemplo do de Yemanjá, feito com água do mar e alfazema. Então, as pessoas que se apoiam nessa espiritualidade podem encontrar nesse sabonete um momento de, durante o banho, se conectar, se acalmar e se cuidar também no espiritual", explica a empreendedora.


COMO ADQUIRIR OS PRODUTOS


Os sabonetes de dendê e os de orixá podem ser adquiridos a partir de R$ 10 no site oficial da ÓiaFia! (clique aqui) e no Instagram do projeto (@oia.fia).


Veja, abaixo, o vídeo de divulgação da ÓiaFia!:
https://youtu.be/uboKSemsOnU?feature=shared
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