Focus: projeto liderado por jovem do Subúrbio impacta mais de 3 mil pessoas em Salvador
Ex-modelo Jonas Bueno criou coletivo Focus há 10 anos para transformar a vida das pessoas pela arte
Ensaios de espetáculos, passos de dança e o barulho das máquinas de costura contrariam o nome do espaço, “Casa das Sete Mortes”, no Pelourinho. Sobre as pedras da Rua do Passo, o casarão de dois pavimentos engloba cursos artísticos e profissionalizantes oferecidos aos mais de 150 alunos do projeto Focus Moda e Produção, pensado e liderado pelo multiartista e ativista Jonas Bueno, de 30 anos.
A história da escola artística - criada há dez anos - se confunde com a de Jonas, que se entende como um agente transformador desde os 15. "Nascido e criado” na Lagoa da Paixão, em Fazenda Coutos, Subúrbio Ferroviário de Salvador, ele sempre utilizou a arte para mostrar aos outros o que considerava bom, mesmo em um contexto marginalizado. Fez teatro, dança, música e trabalhou como modelo, em São Paulo. Foi quando percebeu que esse universo poderia ser excludente - e até perverso - e decidiu voltar para a capital baiana, aos 20, tirando o Focus do campo das ideias.
“Já vim com esse desejo de criar um coletivo no qual pudesse ver todos os corpos e pessoas envolvidas, fazendo uma moda inclusiva e sensibilizando a pessoa preta de que seu corpo é um ato político”, diz ao Aratu On. “Comecei cedo, porque vi a necessidade de transformar as outras pessoas. Sempre me via como um grande missionário”, completa o CEO da Focus.
Na moda, encontrou “poucos dos seus” e também teve oportunidades escassas, que só melhoraram em Salvador, participando do Afro Fashion Day, do qual saiu vencedor, em 2018. “A partir daí, comecei a entender que não preciso sair daqui para acontecer”, conta.
“O processo de modelar é muito árduo e o modelo fica só uns cinco minutos na passarela. Ninguém sabe o nome ou como ele está se sentindo, aí eu disse: não! Preciso fazer uma moda diferente; preciso montar um desfile que seja um desfile-manifesto. Preciso montar um projeto Focus’”, relembra o ativista.
A organização começou no Barracão das Artes, no Forte do Barbalho, com apoio do criador e CEO do Balé Folclórico da Bahia, Vavá Botelho, e de um professor de Jonas, João Gonzaga. “Foram pessoas que me colocaram um gás e o resto eu fui buscar”, afirma.
Na primeira turma, eram 40 alunos. Na segunda, a quantidade dobrou. Hoje, são mais de 150, fazendo cursos de audiovisual, empreendedorismo digital, marketing digital, entre outros. Juntos, constroem um paradoxo ao simbolizarem vitalidade em um imóvel cujo nome faz referência a assassinatos ocorridos no século XVIII, a Casa das Sete Mortes.
“Vários jovens passaram a conhecer o Centro Histórico depois que começaram a acessar a Focus. Para mim, isso é fazer com que entrem em diásporas. Dentro do Centro de Salvador tem um pedaço do Subúrbio e vice-versa. Essa conexão - feita o tempo todo - entrega para eles uma história que foi interrompida. A história contada para a gente não é real, então, estar dentro de um espaço como esse, falando de nossa experiência como pessoas pretas, é muito importante”, destaca Jonas.
Embora maioria, os mais novos não são os únicos contemplados pelo coletivo. Entre os integrantes estão um menino de quatro anos e uma senhora de 70, por exemplo, e ambos fazem aulas de teatro e contracenam em “Palafitas”, espetáculo criado e dirigido por Jonas, cuja estreia ocorreu em maio, no Espaço Xisto Bahia. “É um lugar de troca”, frisa Bueno.
A fala é endossada pela aluna Maiane Santiago, 18, que ingressou no projeto quando ele ainda estava no Barracão das Artes, onde pôde aprender com pessoas de diferentes idades e personalidades. “Fazia aula de circo, dança, participava do núcleo de teatro também, e foi muito importante esse processo, de autoconhecimento e para me reconhecer como atriz”, complementa.
Empreendedorismo social
O trabalho feito na Focus se enquadra como empreendedorismo social, cujo valor empregado é em relação à prática social, como o próprio nome já diz. No entanto, para se encaixar nessa categoria, também é preciso ter algum tipo de lucro, conforme explica Andrea Eichenberger, gestora do Sebraelab Habitat de Impacto, na capital baiana.
“Você visualiza uma oportunidade de negócio e a ação é focada em resolver, prioritariamente, um problema social. Mas, se não houver lucro, é considerada uma organização sem fins lucrativos, ou do terceiro setor”, aponta. A quantia arrecadada não precisa ser alta, porém, a ideia é que a empresa se sustente sozinha, um dos principais desafios dos empreendedores sociais.
De acordo com o Mapa 2021 de Negócios de Impacto, “os apoios necessários para avançar na jornada de negócio não acompanham a necessidade do empreendedor”, o que resulta em 80% das empresas estagnadas entre os estágios de desenvolvimento da solução até organização de negócio, “especialmente na busca por um modelo que gere alguma sustentabilidade financeira”.
O levantamento, feito a cada dois anos pela Pipe, aponta que 44% dos negócios mapeados já acessaram doações ou investimentos. Desses, a primeira opção é a mais procurada (69%), enquanto outros 23% recorrem a empréstimos, 19% à participação (equity) e 9% à dívida conversível (grants e verba de fomento).
Na Focus, Jonas também tem buscado doações e ajudas de custo, pois apesar da visível organização dos trabalhos ali executados, não há nenhuma bolsa de renda, atualmente, e o coletivo chegou a receber uma ordem de despejo do casarão, o que motivou ele a buscar novos patrocinadores.
“Há um ano somos apoiados pela empresa Zeferino, que tem custeado algumas demandas do coletivo, e algumas minhas, também, para não deixar o projeto morrer”, explica. Dessa forma, quem pode contribuir, colabora, mas quem não pode, participa do mesmo jeito: “Entendo como um grande campo de futebol: um jogador pode mudar todo o time”.
Em paralelo, é possível conseguir alguma renda coordenando os cursos, ao solicitar um valor de apoio para aluguel, água e luz, por exemplo. “É uma gestão do ‘nós por nós’, que a gente consegue fomentar, mas, além disso, tem os eventos com bilheteria”, comenta Jonas. Os integrantes também vendem alguns produtos feitos no projeto, como as bags (bolsas) do curso de costura. “Agora, estamos tentando fazer vassouras de garrafa pet e sabão, com óleo vegetal estragado, para fazer essa geração de renda para o coletivo”, acrescenta.
Frutos
Assim, formando-se uma grande rede de apoio, o número de pessoas impactadas pela Focus cresce consideravelmente. “Se formos para a caneta, hoje, conseguimos beneficiar mais de 3 mil pessoas diretamente”, afirma Jonas, reforçando que não se trata apenas de mudança financeira. “Às vezes, o jovem entra aqui com depressão, frustrado, e o projeto consegue acolher e mostrar novas perspectivas. Hoje, temos jovens na faculdade, nas Forças Armadas e também no ramo artístico”.
É o caso da atriz Ariele Pétala, de 16 anos, selecionada para o elenco do filme “Ó Paí, Ó 2”, ainda sem data de estreia. Na trama, ela fará Gisela, filha de Neuzão (Tânia Tôko) e Yolanda (Lyu Arisson). O mesmo aconteceu com João Vitor Santos, ou Roman (nome artístico), de 19 anos, que estará na figuração do longa-metragem. “Foi bem insano, sabe? Meu nome vai estar no final da tela, rolando naquelas letrinhas”, diz, empolgado.
[caption id="attachment_215173" align="alignnone" width="740"] Ariele Pétala na sede da Focus | Foto: Jordan Vilas/reprodução/redes sociais[/caption]
Roman começou a frequentar o projeto em julho do ano passado, para participar do “I Am Afro Fashion”, desfile-manifesto da casa, e acabou ficando. No teatro, fez duas peças de Jonas Bueno, “Navio Negreiro dos Tempos Atuais” e a recente “Palafitas”, na pele do personagem Paulo. Após a estreia oficial nos palcos, comenta os desafios:
“Foi muito igual à minha vivência, enquanto um jovem negro periférico e LGBT, e acho que uma das maiores adversidades nesse papel foi tentar separar da minha realidade. Acho que ainda tenho muito a evoluir, mas a experiência foi muito boa e fiquei feliz com minha entrega”.
[caption id="attachment_215513" align="alignnone" width="740"] João Vitor, ou Roman, aluno da escola artística há um ano | Foto: Juana Castro/Aratu On[/caption]
Para João, espetáculos como “Palafitas” ajudam a conscientizar que situações como as encenadas não devem ser relativizadas. "Apesar do dialeto engraçado, tem uma história de muita dor ali dentro daquele cerco familiar”, avalia o jovem, que além de ator também é estilista, criador da marca “Afro Paint”, de customização de peças à mão. Ele credita ao projeto e seus integrantes o fator impulsionamento. “Essa é a grande capacidade do projeto: tornar uma rede de coletividade, honestidade e afeto. O João depois do Focus está em expansão criativa, permite-se mais e não tem medo”, reflete.
Histórias como as de Pétala e Roman, para Jonas, são “frutos de 10 anos buscando”. “Acredito que é o primeiro momento de muita coisa que ainda vai acontecer, enquanto instituição periférica. É como o pessoal da ExpoFavela fala, que ‘favela não é carência, é potência’. Somos uma potência no Centro de Salvador”.
[caption id="attachment_215519" align="alignnone" width="740"] Cena da montagem "Navio Negreiro" | Foto: Jordan Vilas[/caption]
Palafitas
[caption id="attachment_215181" align="alignnone" width="740"] Parte do cenário de Palafitas, na Casa das Sete Mortes | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On[/caption]
Desse poder surgiu “Palafitas”, que na visão do ativista fala sobre a sua própria vida, alguém que morou em uma invasão. Então, diante da plateia, no Espaço Xisto Bahia, o Jonas diretor teve um sentimento de “despedida”, ou realização. “Foi uma coisa tão linda! Nunca achei que poderia levar barraco pra cima do palco… me vi na cena, vi minha vida sendo contada”, comenta, para em seguida explicar: “não imaginaria chegar até ali, enquanto homem preto, na ‘margem da marginalidade’. A cada 23 minutos um jovem negro é morto. Se tenho três amigos [de infância] vivos, é muito. Então, saber que ‘saí’ desse lugar e voltei com ferramentas para mudar é uma realização”.
Um dia antes da sessão do espetáculo, no entanto, o coletivo teve que lidar com mais uma situação adversa: a bateria e cabos da Kombi do projeto - batizada de "Viatura Cultural" - foram roubados bem em frente à sede. Ainda assim, nada desanimou o grupo, e a meta, agora, é inscrever “Palafitas” em premiações, a exemplo do Braskem de Teatro. “Precisamos ter coletivos periféricos com prêmios nas mãos. É o que falta para empoderar e enriquecer mais a nossa arte”, avalia o diretor.
[caption id="attachment_215510" align="alignnone" width="740"] Ensaio na sede do coletivo, dias antes da estreia | Foto: Juana Castro/Aratu On[/caption]
Ele cita a história de Harriet Tumbman, abolicionista e ativista dos Estados Unidos que libertou mais de mil pessoas escravizadas, no século XIX, e dizia que libertaria muito mais se soubessem que eram escravizados. “Consegui ‘libertar’ diversos jovens e libertaria muito mais se soubessem o quanto existe de possibilidade para eles. Assim como aconteceu comigo, pode acontecer com eles. Não é chegar nesse espaço e permanecer, é frutificar. ‘Traficar’ informação de tudo o que foi apresentado aqui”, pondera.
[caption id="attachment_215182" align="alignnone" width="740"] Corredor no segundo pavimento da casa | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On[/caption]
Efetividade e afetividade
Se manter um negócio cuja base não é o lucro já é difícil, no auge da pandemia de Covid-19 o desafio ficou ainda maior. Segundo Jonas, dos mais de 200 alunos, à época, cerca de 70 perderam algum familiar para a doença, e muitos ainda enfrentaram a falta de trabalho e/ou alimentação. Diante disso, o ativista ousou ser destemido. “O projeto teve uma ação efetiva e afetiva muito grande em tempos pandêmicos, em relação à alimentação e higiene. Foi muito difícil, um caos... mas conseguimos superar”, frisa.
Para que isso acontecesse, contou com a rede que fica à frente do coletivo, assim como durante todos os anos de existência da Focus. Bueno fica com a parte de linguagens artísticas, direção e coordena os cursos de audiovisual e empreendedorismo digital, mas há quem cuide das outras áreas e funções. Duas dessas pessoas, inclusive, são da família dele: a esposa, Ingrid Neves, 27, cuida da comunicação visual e das redes sociais (@focusmodaproducoes), e a sogra, Dona Aidê, 53, também está sempre por perto, principalmente nos momentos gastronômicos.
[caption id="attachment_215511" align="alignnone" width="740"] Dona Aidê, sogra de Jonas, ajuda principalmente na alimentação dos alunos | Foto: Juana Castro/Aratu On[/caption]
Baiana de acarajé e especialista em abará, Dona Aidê já montou muitos “pontos” nos eventos do projeto. Porém, após um problema na coluna, ela tem feito o famoso “abará da Deinha” apenas por encomenda. Mesmo assim, é presença garantida no casarão, acompanhando os ensaios, dando apoio moral, ou cozinhando aos finais de semana para alimentar a turma.
“Sempre ia para os ensaios, até porque minha filha participava. Também preparava o almoço do pessoal, num dia de sábado, ou no teatro. Os meninos chegam, aqui, às vezes, ‘fraquinhos’, e Jonas fala: ‘galera, hoje é por minha conta’”. A dupla, então, comprou panelas, cuscuzeiro e outros itens para a cozinha da Focus. “Ainda faltam algumas coisas, mas é aos pouquinhos”, diz Dona Aidê, que não esconde o encantamento com o trabalho do genro: “Eu, minha filha e meu neto estamos sempre prestigiando”.
Sim. A Focus não é a única “cria” de Jonas. Ele é pai de Miguel, de cinco anos, que não é aluno do projeto, mas já circula pelo espaço. O ativista, no entanto, deixa o pequeno “tranquilo” para escolher se quer seguir, ou não, o caminho da arte. “Liberdade é não ter medo. Acho que ele ainda está muito novo, vem mais para brincar - que também é uma forma de aprender”, enfatiza.
“Imagine com verba”
Para seguir com o empreendedorismo social, Jonas entende que são necessários incentivos públicos e privados. “Também sinto falta da rede universitária dentro desse espaço, para colaborar. Ufba, Uneb... adentrar esse espaço periférico para fomentar e potencializar esses jovens, para capacitá-los e fazer com que eles cheguem ao espaço universitário, que é o sonho de muitos. Acho que o projeto precisa de apoio financeiro e também de apadrinhamento dessas redes de ensino”.
Do ponto de vista prático, ele gostaria de ter recursos para potencializar a sala do digital e fazer uma biblioteca digitalizada. “Preservativo e livro não podem faltar no espaço público”, brinca.
[caption id="attachment_215512" align="alignnone" width="740"] Sala de audiovisual da Focus | Foto: Juana Castro/Aratu On[/caption]
Para além disso, o CEO acredita que falta colaboração de artistas e influenciadores locais, ainda mais por se tratar de um espaço “no berço artístico que é Salvador”. “Precisam ver esse coletivo como ferramenta de potência e capacitação, porque gera um impacto muito grande para o sistema, a cidade e as famílias”, considera.
Na Focus Moda e Produção são oferecidos os chamados “cursos lúdicos” - moda (passarela), teatro, música, artes plásticas, escrita criativa, costura e serigrafia -, e os profissionalizantes: marketing digital, empreendedorismo digital e audiovisual, sendo estes dois últimos apoiados pela Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte da Bahia (Setre). Para se inscrever, é preciso ir à sede da Focus, no Pelourinho, com os seguintes documentos: RG, CPF, comprovante de residência e comprovante escolar (cópia e original).
Todos duram seis meses e os alunos recebem lanche, auxílio para transporte e certificado de conclusão, mas nada impede que os integrantes sigam aprendendo e, outras vezes, ensinando. “Porque é um espaço revolucionário e não engessado”, afirma Jonas. “Há alunos que chegaram crianças e agora são adolescentes. Tem aluno de quatro anos, aluna de 70, e todos conseguem dialogar. É possível!”, acrescenta.
Por fim, chama a atenção: “As pessoas precisam olhar pra gente, querer que a gente aconteça, dar visibilidade. Sem verba, temos 150 jovens aqui. É muito. Imagine com verba?!”.
Casa das Sete Mortes
O nome que desperta curiosidade tem relação com crimes reais ocorridos no imóvel, no século XVIII. Quatro pessoas foram mortas a facadas em 1756: o padre Manuel de Almeida, dois escravizados e um trabalhador liberto. O caso está registrado no Arquivo Público da Bahia, mas o culpado nunca foi descoberto.
Quanto às outras três mortes, existem duas teorias. A primeira é de que uma mulher escravizada teria envenenado o casal de patrões e a filha deles. A segunda fala sobre os corpos de uma mãe e duas filhas, encontrados já em decomposição e sem pistas do assassino.
Localizada na Rua do Passo, nº 24, a casa foi construída no século XVII e tombada em 1943, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Atualmente está sob administração da Casa Pia, entidade filantrópica.
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